quinta-feira, 28 de março de 2013

Primeira Vez

Olhos Claros estava sentado no chão apreciando a luz do círculo branco no céu, rodeado dos inúmeros pontos, também brancos, que faziam muito menos luz. O círculo branco viajava pelo céu à noite, assim como o sol ao dia. Olhos Claros já tinha notado que eles faziam o mesmo movimento, como se um estivesse caçando o outro. Olhos Claros não sabia quem caçava quem, mas estava convicto que era isso que estava acontecendo. O dia que um pegar o outro vai ficar difícil viver, pensava ele, imaginando as conseqüências de uma quebra no equilíbrio. Olhos claros torcia para que eles permanecessem caçando eternamente. A tribo oferecia comida e presentes para os grandes círculos, a fim de mantê-los igualmente em forma. Se um dos dois cansasse antes, a culpa seria dos homens e a vida ficaria bem difícil. A vida não era fácil, mas Olhos Claros gostava como ela estava.

Havia outros movimentos na natureza que a tribo conhecia. Ciclicamente o círculo branco ia ficando cansado e pequeno, para em seguida recuperar o fôlego e encher. Isto assustava os mares e dificultava a pesca. O círculo quente, que aquecia e dava vida, demorava mais para cansar, mas ficava longos períodos fraco, esfriando e impedindo o crescimento das plantações, além de assustar os animais, que desapareciam sem deixar rastro.

Olhos Claros gostava de apreciar o círculo branco porque podia olhar diretamente para ele. O círculo quente era impossível de olhar, a menos que fosse bem cedo ou bem tarde. Isso gerava certa preferência pelo círculo branco, embora torcer pelo mesmo fosse um pensamento perigoso.

As coisas tinham uma forma estranha de se ordenar. Algumas estavam sempre mudando, outras pareciam sempre iguais, paradas ou se repetindo. Olhos Claros desconfiava que todas as coisas que se repetiam tinham uma ligação com perseguição entre os grandes círculos no céu. Isto lhe dava segurança. Tudo parecia previsível e seguro. As coisas que estavam sempre paradas também eram boas. Olhos Claros sempre podia sentar no mesmo lugar no chão a uns cinqüenta passos de uma das tocas. Os homens e as mulheres, entretanto, não podiam ser confiados.

A tribo estava crescendo. Havia bastante comida e o rio tinha a água mais cristalina que ele já tinha visto. As tocas cresciam e havia mais delas. Os homens e as mulheres estavam vivendo mais e mais jovens surgiam. Fogo Cintilante já tinha visto o círculo quente esfriar quarenta vezes.

Muitos jovens na tribo implicava muitos homens para ensinar a caçar, pescar e plantar. Os mais jovens homens não estão aprendendo tão bem quanto antigamente. Estão ficando preguiçosos, refletia. Um dia um deles apareceu com um pássaro-pedra vivo. Ninguém comeu o pássaro-pedra e mais foram aparecendo. Isso foi há uns cinco descansos do círculo quente. O pássaro-pedra, porque não voava, parecia dócil e não tentava fugir. As mulheres davam parte das plantações para eles. Coisas novas estavam acontecendo. Dos pássaros-pedra surgiam pequenas pedras brancas de onde saiam pequenos pássaros-pedra que cresciam também. Não precisamos mais caçar pássaros-pedra, notava Olhos Claros. Toda essa mudança era perigosa. Havia uma razão para os círculos continuarem se perseguindo. Logo a vida ia ficar mais difícil, mas Olhos Claros não conseguia convencer ninguém disso.

Olhos Claros já tinha visto o círculo quente descansar vinte e cinco vezes. Secretamente ele caçava seus próprios pássaros-pedra e comia sozinho, na tentativa de contrabalançar o desequilíbrio que ele previa. Uma noite, quinze descansos depois, ele comia pensativo. Estava desgostoso da vida na tribo. Os descansos do círculo quente pareciam cada vez menores e menos intensos. O rio estava mais abundante. Havia mais verde na paisagem. Fogo Cintilante vivera quarenta e cinco descansos do círculo quente. E ele, Olhos Claros, já presenciara seus próprios quarenta.

As coisas estavam bem diferentes. A tribo estava gigante. A comida estava sobrando. Já se criava patas peludas além dos pássaros-pedra. Olhos Claros já não caçava com a mesma freqüência de antes. Com o tempo ele pensava cada vez mais sobre a tribo e as coisas do mundo. Cada vez menos ele as apreciava.

Olhos Claros já havia percebido que os patas peludas também eram de dois tipos e que a tribo precisava dos dois. Sempre que havia apenas um, não surgiam novos. Era preciso os dois para que novos viessem. Outros estão percebendo isso também. As mulheres estão percebendo que sem contato com os homens não surgem mais jovens. Os homens estão guardando animais que sobram e trocando por outros animais e plantas e ocupando espaço da tribo, pensava. O conhecimento também cresceu. Havia homens e mulheres que faziam coisas que Olhos Claros não sabia fazer. Olhos Claros não gostava daquilo. Ele já vislumbrava o que iria acontecer se tendência se confirmasse.

Homens que tem mais animais estão ficando isolados e tem mais comida para distribuir. Não vai demorar para que as mulheres fiquem junto apenas destes. Se for preciso ficar perto de homens para nascerem novos jovens, tanto melhor que se fique com homens que tem mais comida. Estes jovens terão mais comida para trocar por trabalho e instrumentos e logo controlarão todo espaço para criar animais e plantar. Os outros jovens dependerão dos homens da terra para trabalhar nela e nada mais vai ser da tribo. Isso vai ser muito ruim, pensou Olhos Claros.

Olhos Claros matutava furiosamente. Não vai haver terra para todo mundo. Nem todos vão aceitar. Olhos Claros já viu o que acontece quando os animais tem problemas de território. Os grandes dentes não deixam ninguém chegar perto de sua comida. Olhos Claros está muito triste. Um dia alguém vai querer animais que não tem. Um dia alguém vai pegar animais e levar para seu pedaço de terra, porque estarão sobrando na terra do outro. O que os homens vão fazer? Não pode acontecer.

Olhos Claros gostava quando todo mundo caçava e nada sobrava. E ele podia dormir em qualquer toca e ficar perto de qualquer mulher. Ele gostava quando todo mundo sabia fazer tudo e ele podia realizar qualquer das tarefas. Só havia homens e mulheres e jovens e plantas na tribo.

Com todo aquele pensamento veio o cansaço. O círculo branco já estava indo embora. Olhos Claros tinha que voltar para a toca e dormir. Quando acordasse seria outro dia e haveria mais trabalho. Talvez tudo que ele pensava não fosse acontecer. Os jovens o respeitam e havia comida para todos. Todos trabalhavam, embora alguns fizessem sempre a mesma coisa. Os animais que sobravam ficavam com os criadores e eles trocavam de vez em quando, mas não era muito. Os grandes círculos continuavam sua caça e fuga. Talvez o pessimismo fosse a velhice falando. Olhos Claros queria acreditar nisso.

O sono chegou e veio a manhã. Depois de quarenta vezes o círculo quente esfriar, Olhos Claros não mais levantou. Seu último pensamento fora no lusco-fusco da consciência se tornando inconsciência. Estava feliz porque nunca ia ver seus medos se concretizarem. Ele estava certo, afinal. Somente distantes descendentes estariam presentes para ver o que os homens fizeram desde aquele dia, quando um deles pegou um animal da terra do outro. Um animal que não lhe pertencia.

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