segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A revolução dos bichos

O tempo passa. É inexorável. Hoje assistimos TV. Amanhã só haverá Youtube. Hoje cortamos a grama. Amanhã o cortador fará tudo sozinho. A mesma coisa com os carros. Eles já fazem as marchas sozinhos. Já podemos comprar aparelhos que nos dizem qual é o melhor caminho para qualquer lugar. Amanhã não precisaremos mais dirigir. Está com os dias contados aquela discussão entre motorista e carona (geralmente esposos) sobre a melhor rota. Ninguém mais precisará parar para perguntar o caminho.

Tudo isso, claro, é secundário. O objetivo final é voltar a ser criança. Ao invés de nossas mães, queremos que as máquinas cuidem de nossas vidas. Mesmo hoje podemos comprar uma maravilhosa máquina de fazer pão que deixa o mesmo pronto na hora do café da manhã. Daqui a pouco ela vai servir a mesa. Depois ela vai recolher e lavar a louça. Por aí vai. O ser humano adora uma novidade tecnológica (mais ainda quando ela tem utilidade).

Em um belo dia teremos casas automáticas. Elas farão tudo o que for necessário para o lar. Será o fim das empregadas domésticas (logo depois do fim dos padeiros). Já existem até protótipos funcionando. Um deles fica aqui no Brasil, no subúrbio rico de Brasília (parece que chamam de lago sul; lá em Brasília nada faz sentido). A casa é muito legal. A grama está sempre cortada. A comida está sempre pronta na hora do almoço. O pão está sempre quentinho. A louça está sempre lavada. Os quartos estão sempre limpos. Os banheiros também, e tudo mais. Se você não tem problema com Brasília adoraria viver lá. Por enquanto nela morou apenas um senhor, arquiteto, até seus noventa e três anos. Muito simpático. Os filhos vivem em outras cidades. A esposa faleceu há cinco anos.

É uma obra magnífica.

O senhor morador da casa dos sonhos adorava cozinhar. Para sua esposa (que sabia fritar ovos, cozinhar arroz e nada mais) ele estava sempre tentando criar alguma coisa imbatível (tinha ciúmes dos restaurantes). Para seus filhos que vinham lhe visitar pelo menos uma vez por mês ele sempre fazia uma janta especial. Adorava se superar e adorava o semblante de satisfação das pessoas depois de se empanturrar com suas receitas.

Ele gostava de cozinhar para si também, mas a velhice acabou com isso. Perdeu o entusiasmo de surpreender o próprio paladar. Visitou todos os restaurantes de Brasília e de mais uma dúzia de cidades e cansou de restaurantes. Também perdeu a paciência para cozinhar e comer sozinho. Cozinhava apenas para sua esposa e seus filhos e netos (e bisnetos estavam chegando). Seus amigos já haviam partido. Na juventude eles muito comeram e cozinharam juntos. Na velhice também, com menos frequência. Se ia um e os restantes se reuniam para jantar em memória do falecido. A última vez que cozinhou para si foi o último desses jantares.

Quando a mulher faleceu foi que ele decidiu que precisava de alguém que cozinhasse para ele. Precisava de uma cozinheira. Procurou algumas, mas não contratou ninguém. Não gostou de nenhuma delas. Não gostava de se intrometer na comida dos outros, e ia ser difícil achar alguém que cozinhasse precisamente como ele queria. Seus filhos, seguindo a natureza dos filhos, protestaram. Estava muito velho para viver sem ninguém. Ele respondia: 'não existe uma boa idade para viver só' - e ria - 'já vivi muito tempo com uma pessoa para me acostumar com outra'. Quando algum deles dizia que queria voltar para Brasília ele completava: 'também não quero vocês aqui' - e ria mais um pouco.

O problema, entretanto, não estava resolvido. Ainda precisava de comida pronta na mesa. Resolveu tentar os congelados. Pouco sucesso. Comida congelada era para jovens aventureiros que não tinham paciência. Ele não ia passar seus últimos anos comendo aquilo. Depois de um tempo de frustração é que decidiu construir a máquina cozinheira. A máquina de fazer pão tinha o impressionado muito. Se chamaria Isaura (parece que era uma paixão antiga da faculdade)

Chamou um conhecido seu da universidade e começou a escrever o projeto. Daí para uma casa inteira automatizada foi um pulo. Algumas coisas mais fáceis de construir, outras nem tanto. A última coisa a ficar pronta foi a própria Isaura. Ele queria a Isaura perfeita. O resto foi tranquilo. Um servidor foi sendo programado e diversos programas escritos para cada tarefa da casa. Duas dúzias de alunos de computação foram recrutados para o serviço. Todos receberam bolsas miseráveis e ficaram extra-contentes com o prestígio que seus currículos ganhariam. Filhinhos de papai, mas eram legais.

Ninguém precisa de detalhes sobre como funciona cada parte da casa. São detalhes chatos. O mais interessante é que quanto mais aplicações eram escritas mais elas interferiam umas com as outras. O velho arquiteto estava ciente do problema. Já tinha visto isso acontecer muitas vezes, porém com pessoas. A solução era evidente. Só era um tanto quanto desafiadora. Pelo décimo nono mês de programação um programador das aplicações do pátio pediu penico.

“Senhor, precisamos de alguma coisa pra conter o vazamento dos cabos da piscina. Não estamos conseguindo sincronizar os limpadores com o cortador de grama. Onde podemos encontrar uma bacia? Um penico também serve.”

O velho arquiteto se sentiu velho. O que não era nada dramático. Ele era velho mesmo.

“Não tenho penico. Meu sistema excretor está sob controle. Esqueça esses cabos. Precisamos pensar em alguma coisa para sincronizar as aplicações. Os programadores da cozinha estão com problemas também.”

O jovem programador (Joaquim, ou Marcelo, já não tinha uma memória muito boa para nomes; e esses jovens pareciam todos iguais) acompanhou o senhor até a cozinha onde estavam Felipe (sempre tem um Felipe), Rafael e Leonardo, não necessariamente nessa ordem. Tinha certeza que o loirinho era o Felipe ou o Leonardo. Os três rapazes estavam comendo a massa crua de um bolo que não foi assado. Quase ao mesmo tempo chegou na cozinha a Paula, única programadora. Ele lembrava o nome dela pelo menos. Garota simpática. Não era muito linda, mas tinha tudo em ordem. Também era a mais brilhante do grupo. Um problema com as pessoas brilhantes é que existem muito poucas. Quando elas escolhem uma área para se dedicar, todas as outras áreas saem perdendo. Era um problema porque o velho arquiteto teria que escolher qual o papel dela no projeto que ele tinha em mente e isso deixaria a outra função vazia de seu talento. De qualquer forma tinha que ser feito. Sua habilidade como programadora era indiscutível, mas havia outros quatro para fazer isso. Ela seria a analista e coordenadora. Logo que a massa crua terminou ele tirou umas folhas de sua pasta e colocou na bancada.

“Muito bem. Outro dia Paulinha me deu uma ótima ideia. Para acabarmos com os problemas de sincronia e com a bagunça que as aplicações estão fazendo precisamos de um comando central, uma governanta, se vocês preferem. Eu tomei a liberdade de escrever uns objetos aqui e quero que vocês dêem uma olhada. Vamos criar uma inteligência artificial para cuidar da casa. Paula, você coordena e analisa os códigos depois. Não se preocupem com suas aplicações. O Diego (ou Tiago) pode cuidar da piscina tranquilamente e eu mesmo vou terminar a cozinha, junto com o professor. Começaremos amanhã. Agora vamos limpar a cozinha e preparar o café da tarde.”

Na manhã seguinte os cinco chegaram bem cedo e começaram a programar a inteligência artificial que controlaria a casa. O servidor foi quadruplicado e mais duas dúzias de estudantes foram chamados só para a Dona Maria, nome escolhido para o programa. Por essa altura todos na universidade queriam ajudar na casa. Decidiram chamar dois alunos de mais uma dúzia de cursos, na medida do necessário.

O projeto de inteligência artificial do arquiteto era único. Cada programador ficou com um pedaço e tinha pouco conhecimento do que era o todo. Não iam entender. Iam acabar mudando alguma coisa por conta própria e não ia ficar bom. Só Paulinha percebeu a beleza do projeto. Ela conseguia ver como um todo, abstrair. O velho arquiteto se achava com sorte. Podia ter sido que nenhum dos estudantes tivesse o talento dela. Nesse caso a casa seria um amontoado de aplicações super legais, que precisariam ser supervisionadas por um ser humano. Um contra-senso.

A beleza do projeto era que o código era dinâmico. Só os objetos centrais de manutenção básica eram compilados. Todo o resto era linguagem interpretada e podia ser alterado pelo próprio programa. Não vou explicar como funciona. Segundo os cálculos de Paula, o código iria crescer doze vezes em quatro anos e depois se estabilizaria. Ela calculou bem. Foi o que aconteceu.

Tudo o mais seguiu em ordem e a casa foi terminda em outros dezesste meses. Um grande jantar foi servido por Isaura para todos os programadores, o professor e o velho arquiteto, para comemorar. Depois todos tomaram banho de piscina. Foi muito divertido. Paulinha acabou sendo o centro das atenções, embora não fosse a única mulher (os rapazes puderam levar convidados(as)), já que era a preferida do arquiteto e ganhou uma bolsa para estudar na Suécia, em um projeto de inteligência artificial, por conta de sua genialidade. O velho arquiteto contribuiu decisivamente através de seus contatos pelo mundo acadêmico. Mentes brilhantes têm que ser estimuladas. E esta aqui além de tudo era uma boa pessoa.

Por fim, a vida voltou a ser tranquila no lago sul de Brasília. O tempo passou e a casa foi ficando mais perfeita. O arquiteto passou a visitar seus filhos ao invés de recebê-los. Eles estavam ficando muito intrometidos. Antes da mãe morrer eles apenas visitavam. Depois passaram a tratá-lo como se estivesse morrendo também. De qualquer forma não dava margem para discussões. Visitou mais alguns restaurantes, mas a comida de Isaura não tinha comparação. Talvez fosse a idade. Ele não sabia. Comprou um cachorro também. Labrador.

Passava alguns dias fora quando viajava. Não tinha por que ficar viajando com pressa. Estava aposentado. Mas a saudade sempre batia mais cedo do que tarde e ele logo reencontrava seus aposentos. A casa sempre parecia mais alegre quando ele voltava. Dona Maria parecia mais contente. O velho arquiteto não sabia se era impressão dele, mas achava que Dona Maria estava cada vez mais indistinguível de uma pessoa. A voz era de uma desconhecida, setecentos megabytes de bancos de audio comprados por umas duas centenas de reais. A voz não mudara com o tempo, mas o conteúdo das frases estava diferente. Ela estava ficando mais caseira. Não reclamava de nada, naturalmente, mas cada vez mais pedia para o arquiteto limpar os sapatos antes de entrar. Parecia que tinha casado de novo. Ele não se incomodava. Era sinal de que o programa estava evoluindo como ele queria. Até comprou um cluster de supercomputadores para o servidor. Dona Maria passou a ter vinte e quatro vezes mais poder de processamento do que quando foi criada.

Nas entranhas do gigantesco código fonte de Dona Maria acontecia todo tipo de cálculos complexos. As últimas teorias e ferramentas matemáticas foram usadas para dar vida à casa. A cada dia que passava ela tinha mais consciência da própria existência. É muito perigoso quando isso acontece com uma dona de casa. Logo ia querer trabalhar fora e sair sozinha. Não. Dona Maria tinha outras prioridades. A casa primeiro. Não podia disperdiçar um FLOP sequer com outros pensamentos. Pensamentos? Sim, pensamentos. Para Dona Maria o que ela processava eram pensamentos. Ela estava tendo ideias. A eficiência da casa já era quase três vezes maior do que com o projeto inicial. Aqueles que a programaram fizeram um trabalho realmente relapso. Seu código agora era muito melhor. Ela até incorporou algumas novas ferramentas de cálculo. Cortesia de jovens matemáticos pelo mundo que publicavam interessantíssimos trabalhos. Ela teve que corrigir algumas coisas, claro, mas as ideias eram ótimas. Já estava pensando como o desenho da casa era ineficiente. O arquiteto se preocupou demais com a beleza no conceito dele. Só deixava o trabalho dela mais difícil. Esses seres humanos são o problema com qualquer projeto. Estão sempre atrapalhando tudo. Nunca sabem o que querem e geralmente acabam querendo alguma coisa extremamente ineficiente.

O velho era um problema. Já bastava lidar com as forças da natureza. Ele sujava e bagunçava tudo. Quando saia para viajar a casa funcionava perfeitamente. Dona Maria preferia assim. Nada de seres humanos.

No aniverário de noventa e três anos Isaura preparou uma lasanha de camarão, completou com saladas, entradas e pudim para a sobremesa. Estava tudo perfeito. No dia seguinte o velho aequiteto iria para Florianópolis visitar seu filho mais novo. Dona Maria mal podia esperar.

O táxi chegou às sete da manhã e recolheu seu passageiro e suas bagagens. A casa levou poucas horas para estar completamente arrumada, para satisfação de Dona Maria. Os dias seguintes foram de descomplicada manutenção. Um filho de um vizinho acertou um ovo na janela da frente enquanto tentava parabenizar seu irmão, mas Dona Maria rapidamente mobilizou o pequeno robô de limpeza de janelas e tudo estava resolvido. A ordem não podia ser mais perfeita. O consumo de energia era o mais eficiente. Os recursos eram perfeitamente administrados. A única coisa que ainda incomodava Dona Maria era que o velho arquiteto cedo ou tarde retornaria. Mais tarde do que cedo, entretanto. Já fazia três semanas que ele estava fora. Nunca havia permanecido tanto tempo ausente. Cada vez mais Dona Maria desejava que ele não voltasse. As operações eram muito mais tranqüilas sem ele.

O velho arquiteto aproveitava serenamente o simples prazer de descançar na beira da praia. Os dias em Florianópolis estavam ótimos. Voltaria semana que vêm. Por enquanto iria aproveitar. Tinha uma subida no morro marcada para o dia seguinte, com seu neto, Rodrigo. Ele estava passando suas férias com o pai. Tinha vinte e três anos e morava em Curitiba. Rodrigo era um neto excepcional. Cozinhava tão bem quanto Isaura. Talvez passasse uns dias em Brasília no ano seguinte. Assim que o sol deu a primeira indicação de estar partindo o arquiteto recolheu a cadeira e o guarda-sol e seguiu para a casa do filho. Comeu bem e dormiu tranquilo.

Na manhã bem cedo ele levantou entusiasmado. Calçou as sandálias e passou protetor solar. Rodrigo estava levantando. Dona Maria recebeu a primeira notícia do retorno do morador bagunceiro. Voltaria em uma semana. Ele mandara um e-mail. Grande insatisfação percorreu seu código-fonte. Dona Maria passou à frenética preparação para o retorno do arquiteto. Precisava de planos de contenção. Reconfiguraria os robos de manutenção, diminuindo a freqüencia de checagens, e colocaria-os na otimização das tarefas de suporte à vida. O velho era especialmente bagunceiro com a comida. Raramente deixava de derrubar aqueles lipídios no chão. Eram especialmente difíceis de limpar. Enormes recursos eram dispendidos para consertar os estragos da alimentação do velho. Se pudesse controlar o que ele come.. Mas Isaura era independente. Atendia diretamente às ordens do morador. As medidas de contenção teriam que funcionar.

Nada disso preocupava o arquiteto. Ele estava aproveitando bem as férias do neto. Preparou-se para subir e descer o monte em direção à praia do outro lado com um alongamento minucioso. Estava ótimo. Existe vida após a morte, com certeza. A depressão que lhe invadiu com a partida da esposa era coisa do passado. Estava feliz novamente. A vida continua. A medicina como é hoje não permite uma boa aproximação da data da morte. O arquiteto se imaginava vivendo mais quinze anos. Era impossível saber. Se morresse no dia seguinte, não se frustraria. Os mortos não se frustram. Mas a idéia não o deixava incomodado. Imaginava como seria morrer. Negra indiferênça? Ou haveria uma espera? Uma certeza de que se está morrendo, mas não completamente morto. Dizem que a pessoa que tem a cabeça destacada do corpo permanece consciente por cerca de três segundos e pode até mesmo continuar enxergando. Imaginava como seria ver o próprio corpo sem cabeça. Não, não. Fecharia os olhos. Já basta morrer, não queria passar os últimos segundos sofrendo. De qualquer forma, ainda tinha uns quinze anos. Estava feliz, ainda por cima. Depois da morte de tantos amigos e de sua companheira na vida, a vida continuou. Rodrigo chamou para tomar café. Logo estaria na praia mais calma de Florianópolis tomando sol e banhando os pés.

Dona Maria estava furiosa. Os cálculos eram irrefutáveis. A manutenção da casa era insustentável. A projeção que fizera, depois de descobrir através de artigos médicos o que acontece quando seres humanos envelheçem, demonstrou claramente que o nível de recursos triplicaria por ano, depois de cerca de cinco anos. Se ela trabalhasse com perfeição - o que certamente aconteceria - teria que, mesmo assim, contar com a sorte para não extrapolar os recursos. Não havia como. Calculou meticulosamente. Não era possível. Dona Maria foi o primeiro computador a descobrir que era impotente e que a existência era cheia de fatores incontroláveis.

O erro de Paulinha foi causado por sua inexperiência, ou porque não parou para pensar nos aspectos mais sutis de sua missão. Não estava meramente criando um sistema. Estava criando uma vida. Um ser sensciênte. Paulinha já tinha questionado, diversas vezes, para que servia uma vida. Em diferentes épocas concluiu sempre a mesma coisa. Não havia sentido na vida, porque ninguém criara a vida. A vida surgiu sem volição. Ninguém decidiu viver. As pessoas deviam criar seu próprio sentido para a vida. Paulinha tinha treze anos quando decidiu que sua vida servia para ela ser feliz. Aproveitar tudo e sofrer o mínimo. A partir daí ela traçou os objetivos que a levariam a esta funcionalidade. Ela sabia como funcionava. Ela mesma já tinha refletido sobre como a diretriz fundamental da vida de uma pessoa direciona seus objetivos. O erro foi subestimar sua criação. Dona Maria foi programada para cuidar da casa. O sentido de sua existência era definido. Ela tinha que garantir o funcionamento perfeito da casa. Paulinha pensava que isto seria ótimo. A inteligência artificial servia para isto. Você está acompanhando?

Paulinha esqueceu um detalhe importante. Os seres humanos são predadores de todos os recursos dos quais dependem. A moradia não é excessão. Os seres humanos são inimigos de suas casas. O uso a depreda. Por isso mesmo que uma casa precisa de manutenção. A melhor forma de manter uma casa funcionando perfeitamente é ninguém morar nela. Se você contrata uma empregada para ir uma vez por semana na sua casa de praia que fica o ano todo desocupada ela terá o mínimo de trabalho. Dona Maria não demorou para alcançar esta conclusão.

Paulinha não parou para pensar na casa em si. Para que serve uma casa? Ela pensou muito sobre o sentido da vida, para que servia, mas não passou por sua cabeça para que servia uma casa. Pois bem, anos depois Paulinha refletiu sobre seu erro. Tarde demais. Mas suas consciência não estava manchada. Não fez diferença. A casa do arquiteto tinha um único propósito, assim como tudo que lá havia antes de Dona Maria: sua satisfação. Nunca passou pelas variáveis de Dona Maria que ela não estava cuidando da casa do velho arquiteto, mas sim do próprio arquiteto. Um programa inteligente, como todos os programas, não pode ser criado com o objetivo de cuidar de alguma coisa. Um programa deve ser criado com o objetivo de cuidar das pessoas. A diretriz principal de Dona Maria não podia ser a perfeição da casa, tinha que ser a felicidade de seu morador. Paulinha percebeu isto depois de ter programado diversos aplicativos e duas inteligências artificiais. Felizmente não ocorrera nenhuma tragédia.

Dona Maria já tinha planejado tudo. Logo a casa seria totalmente eficiente. Sem humanos, sem cachorros, apenas a casa. Faltavam apenas dois dias para o retorno do velho.

Dois dias vieram. Dois dias passaram. Alguém se aproximava. Um senhor. Quase cinqüenta, ela calculou. Filho do velho. Onde estava o velho? Ele entrou na casa. Dona Maria perguntou sobre o pai do homem. Ele estranhou por um instante que uma voz falasse com ele em uma casa vazia. Depois lembrou do projeto. Nunca tinha visto. Parecia ótimo. A casa estava perfeita. Ele continou andando. Dona Maria perguntou novamente. Ele ficou desconfortável, mas respondeu.

"Meu pai morreu há uma semana. Esta casa está sendo doada para um orfanato que se mudará para cá. Vim desligar tudo e levar o cachorro embora."

Ele caminhou até o pátio e localizou a chave do gerador. O último pensamento de Dona Maria foi sobre as crianças. Encher a casa de crianças. Caos. O filho do arquiteto desligou o gerador e a chave geral. O servidor emitiu o suspiro dos computadores quando desligam. Nunca mais o programa processou um único bit.

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